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Fonte: comunidadebancodoplaneta.com.br |
James E.
Lovelock
Novas
evidências científicas mostram, a cada dia, que de fato a Terra é um
superorganismo, dotado de auto-regulação. Como partes desses sistemas, porém,
temos responsabilidade individual em mantê-la viva e saudável para as futuras
gerações.
A idéia
de que a Terra é viva pode ser tão velha quanto a humanidade. Os antigos gregos
deram-lhe o poderoso nome de Gaia e tinham-na por deusa. Antes do século 19,
até mesmo os cientistas sentiam-se confortáveis com a noção de uma Terra viva.
Segundo o historiador D. B. McIntyre (1963), James Hutton, normalmente
conhecido como o pai da geologia, disse numa palestra para a Sociedade Real de
Edimburgo na década de 1790 que considerava a Terra um superorganismo e que seu
estudo apropriado seria através da fisiologia. Hutton foi mais adiante e fez a
analogia entre a circulação do sangue, descoberta por Harvey, e a circulação
dos elementos nutrientes da Terra, e a forma como o sol destila água dos
oceanos para que torne a cair como chuva e refresque a terra.
Essa
visão holística de nosso planeta não persistiu no século seguinte. A ciência
estava se desenvolvendo rapidamente e logo se fragmentou numa coletânea de
profissões quase independentes. Tornou-se província do especialista, e pouco de
bom se podia dizer acerca do raciocínio interdisciplinar. Não se podia fugir de
tal introspecção. Havia tanta informação a ser coletada e selecionada!
Compreender o mundo era tarefa tão difícil quanto montar um quebra-cabeça do
tamanho do planeta. Era difícil demais perder a noção da figura enquanto se
procurava e separava as peças.
Quando,
há alguns anos, vimos as fotografias da Terra tiradas do espaço, tivemos um
vislumbre do que estávamos tentando modelar. Aquela visão de estonteante
beleza; aquela esfera salpicada de azul e branco mexeu com todos nós, não
importa que agora seja apenas um clichê visual. A noção de realidade de
compararmos a imagem mental que temos do mundo com aquela que percebemos
através de nossos sentidos. É por isso que a visão que os astronautas tiveram
da Terra foi tão perturbadora. Mostrou-nos a que distância estávamos afastados
da realidade.
A Terra
também foi vista do espaço pelos olhos mais discernentes dos instrumentos, e
foi esta ótica que confirmou a visão que James Hutton teve de um planeta vivo.
Vista à luz infravermelha, a Terra é uma anomalia estranha e maravilhosa entre
os outros planetas do Sistema Solar. Nossa atmosfera, o ar que respiramos
mostrou-se escandalosamente fora de equilíbrio, quimicamente falando. É como a
mistura de gases que penetra no coletor de um motor de combustão interna, ou
seja, hidrocarbonetos e oxigênio misturados, enquanto nossos parceiros mortos
Marte e Vênus têm atmosferas de gases exauridos por combustão.
A
composição inortodoxa da atmosfera emite um sinal tão forte na faixa
infravermelha que poderá ser reconhecido por uma espaçonave a grande distância
do Sistema Solar. As informações que ele transporta são evidência à primeira
vista da presença da vida. Porém, mais do que isso, se a atmosfera instável da
Terra foi capaz de persistir e não se tratava de um evento casual, então isto
significaria que o planeta está vivo - pelo menos até o ponto em que
compartilha com outros organismos vivos a maravilhosa propriedade da
homeostase, a capacidade de controlar sua composição química e se manter bem
quando o ambiente externo está mudando.
Quando,
baseado nessa evidência, eu trouxe novamente à baila a visão de que nos
encontrávamos sobre um superorganismo - e não uma mera bola de pedra -, o
argumento não foi bem recebido. Muitos cientistas o ignoraram ou criticaram
sobre a base de que não era necessário explicar os fatos da Terra. Conforme
disse o geólogo H. D. Holland: "Vivemos numa Terra que é o melhor dos
mundos somente para aqueles que estão bem adaptados ao seu estado
vigente". O biólogo Ford Doolittle (1981) disse que para manter a Terra em
estado constante favorável à vida precisaríamos prever e planejar, e que nenhum
estado desse tipo conseguiria evoluir através da seleção natural. Em suma,
disseram os cientistas, a idéia era teleológica e intestável. Dois cientistas,
entretanto, pensaram de forma diferente; um deles foi a eminente bióloga Lynn
Margulis e o outro o geoquímico Lars Sillen. Lynn Margulis foi minha primeira
colaboradora (Margulis e Lovelock, 1974). Lars Sillen morreu antes que houvesse
uma oportunidade. Foi o romancista William Golding (comunicação pessoal, 1970)
quem sugeriu usar o poderoso nome Gaia para a hipótese que supunha estar viva a
Terra.
Nos
últimos 10 anos, tais críticas foram rebatidas - por um lado devido a novas
evidências e por outro devido a um simples modelo matemático chamado Daisy
World. Nele, o crescimento competitivo de plantas de coloração clara e outras
de coloração escura em um mundo mágico mostra-se mantenedor do clima planetário
constante e confortável face à grande mudança na emissão de calor da estrela do
planeta. O modelo é bastante homeostático e pode resistir a grandes
perturbações não apenas na emissão de calor como também na população vegetal.
Ele se comporta como um organismo vivo, mas não são necessárias previsões ou
planejamentos para sua operação.
As
teorias científicas não são julgadas tanto por estarem certas ou erradas quanto
o são pelo valor de suas previsões. A teoria de Gaia já se mostrou tão frutífera
nestes termos que por ora pouco importaria se estivesse errada. Um exemplo,
tirado dentre tantas previsões, foi a sugestão de que o composto sulfeto de
dimetilo seria sintetizado por organismos marinhos em larga escala para servir
de portador natural de enxofre do oceano para a terra. Sabia-se na época que
alguns elementos essenciais à vida, como o enxofre, eram abundantes nos
oceanos, mas encontravam-se em processo de exaustão em pontos da superfície da
Terra. Segundo a teoria de Gaia, seria necessário um portador natural, e foi
previsto o sulfeto de dimetilo. Agora sabemos que este composto é de fato o
portador natural do enxofre, mas, na ocasião em que a previsão foi feita,
buscar um composto tão incomum assim no ar e no mar teria ido de encontro à
sabedoria convencional. É improvável que tivessem ido buscar sua presença não
fosse pelo estímulo da teoria de Gaia.
A teoria
de Gaia vê a biota e as rochas, o ar e os oceanos como existência de uma
entidade fortemente conjugada. Sua evolução é um processo único, e não vários
processos separados estudados em diferentes prédios de universidades. Ela tem
um significado profundo para a biologia. Afeta até a grande visão de Darwin,
pois talvez não seja mais suficiente dizer que os indivíduos que deixarem a maior
prole terão êxito. Será necessário acrescentar a cláusula de que podem
conseguir contanto que não afetam adversamente o meio ambiente.
A teoria
de Gaia também amplia a ecologia teórica. Colocando-se as espécies e o meio
ambiente juntos, algo que nenhum ecologista teórico fez, a instabilidade
matemática clássica de modelos de biologia populacional está curada.
Pela
primeira vez temos, a partir desses modelos novos, modelos geofisiológicos, uma
justificativa teórica para a diversidade, para a riqueza rousseauniana de uma
floresta tropical úmida, para o emaranhado banco darwiniano. Esses novos
modelos ecológicos demonstram que, à medida que aumenta a diversidade, também
aumentam a estabilidade e a resiliência. Agora podemos racionalizar a
repugnância que sentimos pelos excessos dos negócios agrícolas. Finalmente
temos uma razão para nossa ira contra a eliminação insensata de espécies e uma
resposta para aqueles que dizem tratar-se de um mero sentimentalismo.
Não
precisamos mais justificar a existência de florestas tropicais úmidas sobre as
bases precárias de que elas podem conter plantas com drogas capazes de curar
doenças humanas. A teoria de Gaia nos força a ver que elas oferecem muito mais
que isso. Dada sua capacidade de evapotranspirar enormes volumes de vapor
d'água, elas servem para refrescar o planeta propiciando-lhe a proteção solar
de nuvens brancas refletoras. Sua substituição por lavoura poderia precipitar
um desastre em escala global.
Um
sistema geofisiológico sempre começa com a ação de um organismo individual. Se
esta ação for localmente benéfica para o meio ambiente, ela então poderá se
difundir até que acabe resultando um altruísmo global. Gaia sempre opera assim
para atingir seu altruísmo. Não há previsão ou planejamento envolvido. O
inverso também é verdadeiro, e qualquer espécie que afete o meio ambiente
desfavoravelmente está sentenciada, mas a vida continua. Será que isto se
aplica aos seres humanos agora? Estaremos fadados a precipitar uma mudança do
atual estado confortável da Terra para um quase certamente desfavorável para
nós porém confortável para a biosfera de nossos sucessores? Por sermos
conscientes, há alternativas, tanto boas quanto más. Por certos caminhos, o
pior destino que nos aguarda é sermos alistados como os médicos e as enfermeiras
de um planeta geriátrico com a infindável e intangível tarefa de buscar
eternamente tecnologias capazes de mantê-lo adequado ao nosso tipo de vida -
algo que até bem pouco tempo atrás recebíamos gratuitamente por sermos uma
parte de Gaia.
A filosofia
de Gaia não é humanista. Mas, sendo avô de oito netos, eu preciso ser otimista.
Vejo o mundo como um organismo vivo do qual somos parte; não os donos, não os
inquilinos, sequer os passageiros. Explorar esse mundo na escala que fazemos
seria tão tolo quanto considerar supremo o cérebro e dispensáveis as células de
minerar nosso fígado em busca de nutrientes para algum benefício de curta
duração?
Por
sermos habitantes de cidades, ficamos obcecados pelos problemas humanos. Até
mesmo os ambientalistas parecem mais preocupados com a perda de um ano de
expectativa de vida devido ao câncer do que com a degradação do mundo natural
através do desmatamento ou dos gases do efeito estufa - algo que poderia causar
a morte de nossos netos. Estamos tão alienados do mundo da natureza que poucos
somos os que conhecemos os nomes das flores e dos insetos selvagens das
localidades onde vivemos ou percebemos a rapidez de sua extinção.
Gaia
funciona a partir do ato de um organismo individual que se desenvolve até o
altruísmo global. Envolve ação em nível pessoal. Você bem pode perguntar:
"E o que posso fazer?" Quando procuro agir pessoalmente em favor de
Gaia através da moderação, acho útil pensar em três elementos mortais:
combustão, gado e motosserra. Devem existir muitos outros.
Uma coisa
que você pode fazer, e isto não passa de um exemplo, é comer menos carne de
boi. Agindo assim, e se os médicos estiverem certos, você poderá estar fazendo
um bem a si próprio; ao mesmo tempo, poderá estar reduzindo as pressões sobre
as florestas dos trópicos úmidos. Ser egoísta é humano e natural. Mas se
preferirmos ser egoístas no caminho correto, então a vida pode ser rica e ainda
assim consistente com um mundo adequado para os nossos netos, bem como para os
netos de nossos parceiros em Gaia.
(O texto
aqui apresentado constitui um excerto do capítulo 56 do livro Biodiversidade,
organizado por E. O. Wilson. Lançada recentemente no Brasil pela Editora Nova
Fronteira, a obra reúne artigos apresentados no Fórum Nacional Sobre
Biodiversidade, realizado em Washington no ano de 1986 e que reuniu alguns dos
maiores especialistas mundiais ligados à questão da biodiversidade. A tradução
é de Marcos Santos e Ricardo Silveira). Disponível em: http://www.ufpa.br/permacultura/gaia.htm
. Acesso em: 26 de dezembro de 2012.