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sábado, 21 de dezembro de 2013

OS PROFESSORES NA VIRADA DO MILÊNIO: DO EXCESSO DOS DISCURSOS À POBREZA DAS PRÁTICAS


Por António Nóvoa  (Universidade de Lisboa)
 
RESUMO
Escrito na sequência de uma Conferência proferida na Universidade de São Paulo, este artigo procura analisar a “realidade discursiva” que marca grande parte dos textos sobre educação neste final de século. A chave de leitura do artigo é a lógica excesso-pobreza, aplicada ao exame da situação dos professores: i) do excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas educativas; ii) o excesso das linguagens dos especialistas internacionais à pobreza dos programas de formação de professores; iii) do excesso do discurso científico-educacional à pobreza das práticas pedagógicas; iv) do excesso das “vozes” dos professores à pobreza das práticas associativas docentes. Não recusando um pensamento “utópico”, o autor critica as análises “prospectivas” que revelam um “excesso de futuro” que é, ao mesmo tempo, um “défice de presente”.
RESUME
Rédigé à la suite d’une Conférence donnée à l’Université de São Paulo, cet article cherche à analyser la “réalité discursive” qui marque la plupart des textes sur l’éducation dans cette fin de siècle. La clef de lecture de l’article est le couple excès-pauvreté, appliqué à l’examen de la situation des enseignants: i) de l’excès de la rhétorique politique et des mass-media à la pauvreté des politiques éducatives; ii) de l’excès des langages des experts internationaux à la pauvreté des programmes de formation des enseignants; iii) de l’excès du discours scientifique-éducationnel à la pauvreté des pratiques pédagogiques; iv) de l’excès des “voix” des enseignants à la pauvreté des pratiques associatives des enseignants. Ne refusant pas une pensée “utopique”, l’auteur critique les analyses “prospectives” qui sont porteuses d’un “excès d’avenir” qui est, en même temps, un “déficit de présent”.
Introdução
Nos dias de hoje, há uma retórica cada vez mais abundante sobre o papel fundamental que os professores serão chamados a desempenhar na construção da “sociedade do futuro”. Um pouco por todo o lado, políticos e intelectuais juntam as suas vozes clamando pela dignificação dos professores, pela valorização da profissão docente, por uma maior autonomia profissional, por uma melhor imagem social, etc.
Nos programas de acção política ou nos discursos reformadores, nos documentos dos “especialistas” da União Europeia ou na literatura produzida pelos investigadores, reencontramos sempre as mesmas palavras, repetidas uma e outra vez, sobre a importância dos professores nos “desafios do futuro”. Ou porque lhes cabe formar os recursos humanos necessários ao desenvolvimento económico, ou porque lhes compete formar as gerações do século XXI, ou porque devem preparar os jovens para a sociedade da informação e da globalização, ou por qualquer outra razão, os professores voltam a estar no centro das preocupações políticas e sociais.
Recentemente, várias organizações internacionais têm falado da nova “centralidade” dos professores, referindo-se mesmo à necessidade de “trazer outra vez os professores para o retrato”. O meu artigo procura analisar esta realidade discursiva, questionando as suas razões e contradições. O subtítulo desvenda a linha central da argumentação: Do excesso dos discursos à pobreza das práticas.
Não pretendo, obviamente, sugerir uma oposição entre “discursos” e “práticas”, como se estivéssemos perante dois mundos distintos. Bem pelo contrário. Quero demonstrar de que forma os “discursos” induzem comportamentos e prescrevem atitudes “razoáveis” e “correctas” (e vice-versa). Mas quero mostrar, também, o modo como eles constroem uma ideia de profissão docente que, muitas vezes, não corresponde à intencionalidade declarada. A chave de leitura do artigo é o par excesso-pobreza, aplicado à análise da situação dos professores:
Do excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas educativas.
Do excesso das linguagens dos especialistas internacionais à pobreza dos programas de formação de professores.
Do excesso do discurso científico-educacional à pobreza das práticas pedagógicas.
Do excesso das “vozes” dos professores à pobreza das práticas associativas docentes.
DO EXCESSO DA RETÓRICA POLÍTICA E DOS MASS-MEDIA
À POBREZA DAS POLÍTICAS EDUCATIVAS
Em sociedades marcadas por crises de legitimidade política e por défices de participação, surge sempre uma dupla tendência: por um lado, para pregar o civismo, o que compensaria a falta de uma autêntica vivência democrática; por outro lado, para evitar o presente, projectando todas as expectativas na “sociedade do futuro”.
Para pregar o civismo ou para imaginar o futuro, nada melhor do que os professores. É para eles que se viram as atenções dos políticos e da opinião pública quando não encontram outras respostas para os problemas. A inflação retórica tem um efeito desresponsabilizador: o verbo substitui a acção e conforta-nos no sentimento de que estamos a tentar fazer alguma coisa...
O excesso dos discursos esconde a pobreza das práticas políticas. Neste fim de século, não se vêm surgir propostas coerentes sobre a profissão docente. Bem pelo contrário. As ambiguidades são permanentes.
Por um lado, os professores são olhados com desconfiança, acusados de serem profissionais medíocres e de terem uma formação deficiente; por outro lado, são bombardeados com uma retórica cada vez mais abundante que os considera elementos essenciais para a melhoria da qualidade do ensino e para o progresso social e cultural.
Umas vezes, as respostas procuram-se num “liberalismo” levado ao extremo: vejam-se, por exemplo, as recentes medidas decretadas pelo governo de Tony Blair concedendo a empresas privadas a gestão dos professores substitutos nas escolas públicas inglesas. Outras vezes, assistimos ao recurso a um “autoritarismo” inusitado: vejam-se, por exemplo, certas medidas de controlo estatal ou de avaliação dos desempenhos profissionais.
No caso dos professores, o liberalismo e o autoritarismo surgem frequentemente associados, configurando políticas desgarradas e contraditórias. Como escreve Hans Vonk, “nas sociedades actuais, os burocratas definem vários problemas sociais e educacionais numa perspectiva gerencial e não numa perspectiva de conteúdo” (1991, p. 134). O excesso dos discursos faz lembrar o final do século XIX, quando os professores eram investidos de todos os poderes (até o de ganhar guerras). Mas nessa época havia um consenso social em torno da missão dos professores. Hoje, não há. E o excesso dos discursos tende, apenas, a esconder a pobreza das políticas.
DO EXCESSO DAS LINGUAGENS DOS ESPECIALISTAS INTERNACIONAIS
À POBREZA DOS PROGRAMAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Nos últimos anos, os especialistas internacionais têm estado particularmente activos no aconselhamento e consultoria na área da educação. As grandes organizações (Unesco, OCDE, União Europeia, etc.) parecem ter redescoberto as análises prospectivas, anunciando nos seus documentos a “sociedade educativa”, a “sociedade do conhecimento”, a “sociedade que aprende” ou a “sociedade cognitiva” do próximo século.
É nestes textos que se cunha o conceito de centralidade dos professores. No relatório da OCDE, Education Policy Analysis (1998), em apenas três páginas utilizam-se expressões como: “trazer outra vez os professores para o retrato”; “colocar os professores no centro dos processos sociais e económicos”; “os professores são os profissionais mais relevantes na construção da sociedade do futuro”; “os professores têm de voltar para o centro das estratégias culturais”; “os professores estão no coração das mudanças”. Tudo isto para concluir que “a centralidade dos professores nem sempre é devidamente reconhecida no plano político”.
Um dos domínios ao qual os especialistas internacionais dedicam mais atenção é a formação inicial e continuada de professores. As medidas propostas insistem nos sistemas de acreditação (no caso da formação inicial) e nas lógicas de avaliação (no caso da formação continuada), arrastando uma concepção escolarizada da formação de professores. Consolida-se um “mercado da formação”, ao mesmo tempo que se vai perdendo o sentido da reflexão experiencial e da partilha de saberes profissionais.
Nos Estados Unidos, um dos grupos que mais tem influenciado as políticas educativas nas últimas décadas, o Holmes Group, escreve na abertura do seu relatório Tomorrow’s Schools of Education: “Muitas pessoas e instituições dedicam-se à formação de professores, apenas e unicamente por se tratar de um mercado rentável. A formação de professores e de educadores é um grande negócio numa nação que emprega mais de três milhões de educadores. Os dólares cintilam nos olhos daqueles que andam à procura de boas oportunidades de mercado” (1995, p. 1).
Na Europa, os 4 milhões de professores constituem um “mercado” altamente cobiçado. Não espanta, por isso, que a coberto dos mais diversos argumentos (racionalização, eficácia, flexibilidade, excelência, etc.) se esteja, simultaneamente, a desmantelar as escolas superiores e universitárias de formação de professores e a tentar colocar sob “gestão privada” a oferta de formação dos centros de professores. Num e noutro caso, as grandes palavras servem para ocultar interesses concretos. Ainda há pouco tempo, o ministro da Educação Nacional do governo socialista francês afirmava que era necessário “instilar no sistema de ensino o espírito de empresa e de inovação”, considerando que a educação “será o grande mercado do século XXI”.
A luta por este “mercado” tem trazido para a formação de professores um conjunto de instituições e de grupos científicos, que nunca tinham demonstrado grande interesse por este campo. Infelizmente, os benefícios desta aproximação não são muito visíveis. E o resultado é a pobreza actual da maioria dos programas de formação de professores nos países europeus.
DO EXCESSO DO DISCURSO CIENTÍFICO/EDUCACIONAL
À POBREZA DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
Uma das realidades mais importantes das duas últimas décadas é o desenvolvimento extraordinário do campo universitário da pedagogia e/ou das ciências da educação. Hoje em dia, há milhares de investigadores nesta área, que produzem uma quantidade impressionante de textos, documentos, pesquisas, revistas, congressos, cursos, etc.
Em grande parte, esta comunidade científico-educacional alimenta-se dos professores e legitima-se através de uma reflexão sobre eles. Deste modo, não espanta que também os pedagogos sejam excessivos nas referências aos professores, pois esta é a melhor maneira de valorizarem o seu próprio trabalho. A consequência é uma recorrente “responsabilização” dos professores pelas “resistências” que opõem à razão científica tal como lhes é servida pelos investigadores.
A profissionalização dos professores está dependente da possibilidade de construir um saber pedagógico que não seja puramente instrumental. Por isso, é natural que os momentos-fortes de produção de um discurso científico em educação sejam, também, momentos-fortes de afirmação profissional dos professores. Todavia, estes momentos contêm igualmente os germes de uma desvalorização da profissão, uma vez que provocam a deslegitimação dos professores enquanto produtores de saberes e investem novos grupos de especialistas que se assumem como “autoridades científicas” no campo educativo. O entendimento deste paradoxo parece-me essencial para compreender alguns dos dilemas actuais da profissão docente.
É verdade que existe, no espaço universitário, uma retórica de “inovação”, de “mudança”, de “professor reflexivo”, de “investigação-acção”, etc.; mas a Universidade é uma instituição conservadora, e acaba sempre por reproduzir dicotomias como teoria/prática, conhecimento/acção, etc. A ligação da Universidade ao terreno (curiosa metáfora!) leva a que os investigadores fiquem a saber o que os professores sabem, e não conduz a que os professores fiquem a saber melhor aquilo que já sabem.
A estratégia de desapossar os professores dos seus saberes serve objectivos de desenvolvimento da carreira dos universitários, mesmo que se legitime com o argumento de que serve para o desenvolvimento profissional dos professores. Como desabafava um dos mais prestigiados professores portugueses dirigindo-se a uma plateia de universitários na área das Ciências da Educação: “Vocês domesticaram-nos! Não temos mais espaço, nem legitimidade, para lançar dinâmicas pedagógicas novas”.
Não deixa de ser estranho que, numa época em que tanto se fala de “autonomia profissional” ou de “professores reflexivos”, se assista a um desaparecimento dos movimentos pedagógicos, no sentido que este termo adquiriu na primeira metade do século XX, isto é, colectivos de professores que se organizam em torno de princípios educativos ou de propostas de acção, da difusão de métodos de ensino ou da defesa de determinados ideais.
A pobreza actual das práticas pedagógicas, fechadas numa concepção curricular rígida e pautadas pelo ritmo de livros e materiais escolares concebidos por grandes empresas, é a outra face do excesso do discurso científico-educacional, tal como ele se produz nas comunidades académicas e nas instituições de ensino superior.
 
DO EXCESSO DAS “VOZES” DOS PROFESSORES
À POBREZA DAS PRÁTICAS ASSOCIATIVAS DOCENTES
Finalmente, é útil chamar a atenção para o excesso das “vozes” dos professores. Face a situações de dificuldade e de desvalorização social e profissional, eles deixam-se tentar pelo “sobre-dimensionamento” das suas missões, apropriando-se de alguns dos discursos anteriores e transformando-os em “vozes” próprias. Assumem, assim, responsabilidades desmedidas, ambição que se vira frequentemente contra eles.
É evidente que nenhum grupo profissional pode ser indiferente à sua imagem pública. E esta estratégia procura valorizar socialmente o seu papel. Mas ela é particularmente perigosa e tem constituído um factor importante do mal-estar docente. A escola e os professores não podem colmatar a ausência de outras instâncias sociais e familiares no processo de educar as gerações mais novas. Ninguém pode carregar aos ombros missões tão vastas como aquelas que são cometidas aos professores e que eles próprios, por vezes, se atribuem.
Curiosamente, é neste tempo de tantas ambições que se tem acentuado uma maior dependência dos professores face aos poderes públicos, às entidades privadas e às instituições universitárias. E que se tem notado uma grande dificuldade de consolidar práticas de partilha profissional e de colaboração inter-pares. É verdade que há sinais de revitalização do sindicalismo docente, mas este facto não compensa a inexistência de uma colegialidade que não se esgota nos modelos sindicais tradicionais.
Ao olharmos para a história, verificamos que nunca a fragilidade associativa dos professores foi tão grande, o que não deixa de ser preocupante. Ora, sem um reforço das dimensões colectivas e colegiais no seio do professorado, não vale a pena levantar a voz (as “vozes”), pois não é por falarmos mais alto que temos mais razão ou que defendemos melhor os nossos interesses.
Tradicionalmente, os professores oscilaram entre um extremo “individualismo” na acção pedagógica e modelos sindicais típicos de “funcionários do Estado”. São, nos dias de hoje, formas obsoletas de encarar a profissão. O empobrecimento das práticas associativas tem consequências muito negativas para a profissão docente. É urgente, por isso, descobrir novos sentidos para a ideia de colectivo profissional. É preciso inscrever rotinas de funcionamento, modos de decisão e práticas pedagógicas que apelem à co-responsabilização e à partilha entre colegas. É fundamental encontrar espaços de debate, de planificação e de análise, que acentuem a troca e a colaboração entre os professores.
EM JEITO DE CONCLUSÃO PROVISÓRIA:
POLÍTICAS, FORMAÇÃO, PRÁTICAS, ASSOCIATIVISMO
Seria fácil identificar outros excessos no modo de pensar os professores: por exemplo, a atitude dos pais exigindo que os professores assegurem aquilo de que eles próprios já se demitiram ou o comportamento dos empresários reclamando que os alunos desenvolvam competências que mais tarde não valorizam. Mas os excessos mencionados são suficientes para sustentar a minha recusa de um pensamento que se projecta num “excesso do futuro” como forma de justificar a “pobreza do presente”. Como já se escreveu, não é por avançarmos os relógios que o futuro chega mais cedo (Koselleck, 1979).
Aparentemente, estou em desacordo com Zaki Laïdi quando ele denuncia a “tirania da urgência”: “Exigimos do presente o que esperávamos do passado. A urgência não nega o tempo. Ela sobrecarrega-o com exigências inscritas apenas na imediatez. (...) É por isso que, na ausência de um pensamento sobre o futuro, a urgência contribui para o destruir. A sua pretensa neutralidade temporal é totalmente ilusória, porque toda a preferência implica uma escolha e toda a preferência excessiva pelo presente conduz necessariamente a opções excessivas contra o futuro” (1999, p. 27). Mas este desacordo é aparente. Ambos recusamos um presente e um futuro como “fugas” ou “refúgios”.
Eu sei que a reflexão prospectiva foi, num passado não muito distante, a manifestação de um pensamento utópico, de uma vontade de mudar as coisas da educação. Mas hoje trata-se, na maior parte dos casos, de um mero jogo nominalista, como se não houvesse outra mudança para além da alteração dos nomes. São exercícios “técnicos”, esvaziados de uma ideia de futuro inscrita numa relação ao tempo histórico e social.


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