Por António Nóvoa (Universidade de Lisboa)
RESUMO
Escrito
na sequência de uma Conferência proferida na Universidade de São Paulo, este
artigo procura analisar a “realidade discursiva” que marca grande parte dos
textos sobre educação neste final de século. A chave de leitura do artigo é a
lógica excesso-pobreza, aplicada ao exame da situação dos professores:
i) do excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas
educativas; ii) o excesso das linguagens dos especialistas internacionais à
pobreza dos programas de formação de professores; iii) do excesso do discurso
científico-educacional à pobreza das práticas pedagógicas; iv) do excesso das
“vozes” dos professores à pobreza das práticas associativas docentes. Não
recusando um pensamento “utópico”, o autor critica as análises “prospectivas”
que revelam um “excesso de futuro” que é, ao mesmo tempo, um “défice de
presente”.
RESUME
Rédigé à la suite d’une
Conférence donnée à l’Université de São Paulo, cet article cherche à analyser
la “réalité discursive” qui marque la plupart des textes sur l’éducation dans
cette fin de siècle. La clef de lecture de l’article est le couple excès-pauvreté,
appliqué à l’examen de la situation des enseignants: i) de l’excès de la
rhétorique politique et des mass-media à la pauvreté des politiques éducatives;
ii) de l’excès des langages des experts internationaux à la pauvreté des
programmes de formation des enseignants; iii) de l’excès du discours
scientifique-éducationnel à la pauvreté des pratiques pédagogiques; iv) de
l’excès des “voix” des enseignants à la pauvreté des pratiques associatives des
enseignants. Ne refusant pas une pensée “utopique”, l’auteur critique les
analyses “prospectives” qui sont porteuses d’un “excès d’avenir” qui est, en
même temps, un “déficit de présent”.
Introdução
Nos dias de hoje, há uma retórica cada vez mais
abundante sobre o papel fundamental que os professores serão chamados a
desempenhar na construção da “sociedade do futuro”. Um pouco por todo o lado,
políticos e intelectuais juntam as suas vozes clamando pela dignificação dos
professores, pela valorização da profissão docente, por uma maior autonomia
profissional, por uma melhor imagem social, etc.
Nos programas de acção política ou nos discursos
reformadores, nos documentos dos “especialistas” da União Europeia ou na
literatura produzida pelos investigadores, reencontramos sempre as mesmas
palavras, repetidas uma e outra vez, sobre a importância dos professores nos
“desafios do futuro”. Ou porque lhes cabe formar os recursos humanos
necessários ao desenvolvimento económico, ou porque lhes compete formar as
gerações do século XXI, ou porque devem preparar os jovens para a sociedade da
informação e da globalização, ou por qualquer outra razão, os professores
voltam a estar no centro das preocupações políticas e sociais.
Recentemente, várias organizações internacionais têm
falado da nova “centralidade” dos professores, referindo-se mesmo à necessidade
de “trazer outra vez os professores para o retrato”. O meu artigo procura
analisar esta realidade discursiva, questionando as suas razões e contradições.
O subtítulo desvenda a linha central da argumentação: Do excesso dos
discursos à pobreza das práticas.
Não pretendo, obviamente, sugerir uma oposição entre
“discursos” e “práticas”, como se estivéssemos perante dois mundos distintos.
Bem pelo contrário. Quero demonstrar de que forma os “discursos” induzem
comportamentos e prescrevem atitudes “razoáveis” e “correctas” (e vice-versa).
Mas quero mostrar, também, o modo como eles constroem uma ideia de profissão
docente que, muitas vezes, não corresponde à intencionalidade declarada. A
chave de leitura do artigo é o par excesso-pobreza, aplicado à análise
da situação dos professores:
Do excesso da retórica política e dos mass-media à
pobreza das políticas educativas.
Do excesso das linguagens dos especialistas
internacionais à pobreza dos programas de formação de professores.
Do excesso do discurso científico-educacional à
pobreza das práticas pedagógicas.
Do excesso das “vozes” dos professores à pobreza das
práticas associativas docentes.
DO EXCESSO DA RETÓRICA POLÍTICA E DOS MASS-MEDIA
À POBREZA DAS POLÍTICAS EDUCATIVAS
Em sociedades marcadas por crises de legitimidade
política e por défices de participação, surge sempre uma dupla tendência: por
um lado, para pregar o civismo, o que compensaria a falta de uma autêntica
vivência democrática; por outro lado, para evitar o presente, projectando todas
as expectativas na “sociedade do futuro”.
Para pregar o civismo ou para imaginar o futuro, nada
melhor do que os professores. É para eles que se viram as atenções dos
políticos e da opinião pública quando não encontram outras respostas para os
problemas. A inflação retórica tem um efeito desresponsabilizador: o verbo
substitui a acção e conforta-nos no sentimento de que estamos a tentar fazer
alguma coisa...
O excesso dos discursos esconde a pobreza das práticas
políticas. Neste fim de século, não se vêm surgir propostas coerentes sobre a
profissão docente. Bem pelo contrário. As ambiguidades são permanentes.
Por um lado, os professores são olhados com
desconfiança, acusados de serem profissionais medíocres e de terem uma formação
deficiente; por outro lado, são bombardeados com uma retórica cada vez mais
abundante que os considera elementos essenciais para a melhoria da qualidade do
ensino e para o progresso social e cultural.
Umas vezes, as respostas procuram-se num “liberalismo”
levado ao extremo: vejam-se, por exemplo, as recentes medidas decretadas pelo
governo de Tony Blair concedendo a empresas privadas a gestão dos professores
substitutos nas escolas públicas inglesas. Outras vezes, assistimos ao recurso
a um “autoritarismo” inusitado: vejam-se, por exemplo, certas medidas de controlo
estatal ou de avaliação dos desempenhos profissionais.
No caso dos professores, o liberalismo e o
autoritarismo surgem frequentemente associados, configurando políticas
desgarradas e contraditórias. Como escreve Hans Vonk, “nas sociedades actuais,
os burocratas definem vários problemas sociais e educacionais numa perspectiva
gerencial e não numa perspectiva de conteúdo” (1991, p. 134). O excesso dos
discursos faz lembrar o final do século XIX, quando os professores eram
investidos de todos os poderes (até o de ganhar guerras). Mas nessa época havia
um consenso social em torno da missão dos professores. Hoje, não há. E o
excesso dos discursos tende, apenas, a esconder a pobreza das políticas.
DO EXCESSO DAS LINGUAGENS DOS ESPECIALISTAS
INTERNACIONAIS
À POBREZA DOS PROGRAMAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Nos últimos anos, os especialistas internacionais têm
estado particularmente activos no aconselhamento e consultoria na área da
educação. As grandes organizações (Unesco, OCDE, União Europeia, etc.) parecem
ter redescoberto as análises prospectivas, anunciando nos seus documentos a
“sociedade educativa”, a “sociedade do conhecimento”, a “sociedade que aprende”
ou a “sociedade cognitiva” do próximo século.
É nestes textos que se cunha o conceito de
centralidade dos professores. No relatório da OCDE, Education Policy
Analysis (1998), em apenas três páginas utilizam-se expressões como:
“trazer outra vez os professores para o retrato”; “colocar os professores no centro
dos processos sociais e económicos”; “os professores são os profissionais
mais relevantes na construção da sociedade do futuro”; “os professores
têm de voltar para o centro das estratégias culturais”; “os professores
estão no coração das mudanças”. Tudo isto para concluir que “a centralidade
dos professores nem sempre é devidamente reconhecida no plano político”.
Um dos domínios ao qual os especialistas
internacionais dedicam mais atenção é a formação inicial e continuada de
professores. As medidas propostas insistem nos sistemas de acreditação (no caso
da formação inicial) e nas lógicas de avaliação (no caso da formação
continuada), arrastando uma concepção escolarizada da formação de professores.
Consolida-se um “mercado da formação”, ao mesmo tempo que se vai perdendo o
sentido da reflexão experiencial e da partilha de saberes profissionais.
Nos Estados Unidos, um dos grupos que mais tem
influenciado as políticas educativas nas últimas décadas, o Holmes Group,
escreve na abertura do seu relatório Tomorrow’s Schools of Education:
“Muitas pessoas e instituições dedicam-se à formação de professores, apenas e
unicamente por se tratar de um mercado rentável. A formação de professores e de
educadores é um grande negócio numa nação que emprega mais de três milhões de
educadores. Os dólares cintilam nos olhos daqueles que andam à procura de boas
oportunidades de mercado” (1995, p. 1).
Na Europa, os 4 milhões de professores constituem um
“mercado” altamente cobiçado. Não espanta, por isso, que a coberto dos mais
diversos argumentos (racionalização, eficácia, flexibilidade, excelência, etc.)
se esteja, simultaneamente, a desmantelar as escolas superiores e
universitárias de formação de professores e a tentar colocar sob “gestão
privada” a oferta de formação dos centros de professores. Num e noutro caso, as
grandes palavras servem para ocultar interesses concretos. Ainda há pouco
tempo, o ministro da Educação Nacional do governo socialista francês afirmava
que era necessário “instilar no sistema de ensino o espírito de empresa e de
inovação”, considerando que a educação “será o grande mercado do século XXI”.
A luta por este “mercado” tem trazido para a formação
de professores um conjunto de instituições e de grupos científicos, que nunca
tinham demonstrado grande interesse por este campo. Infelizmente, os benefícios
desta aproximação não são muito visíveis. E o resultado é a pobreza actual da
maioria dos programas de formação de professores nos países europeus.
DO EXCESSO DO DISCURSO CIENTÍFICO/EDUCACIONAL
À POBREZA DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
Uma das realidades mais importantes das duas últimas
décadas é o desenvolvimento extraordinário do campo universitário da pedagogia
e/ou das ciências da educação. Hoje em dia, há milhares de investigadores nesta
área, que produzem uma quantidade impressionante de textos, documentos,
pesquisas, revistas, congressos, cursos, etc.
Em grande parte, esta comunidade
científico-educacional alimenta-se dos professores e legitima-se através de uma
reflexão sobre eles. Deste modo, não espanta que também os pedagogos sejam
excessivos nas referências aos professores, pois esta é a melhor maneira de
valorizarem o seu próprio trabalho. A consequência é uma recorrente “responsabilização”
dos professores pelas “resistências” que opõem à razão científica tal como lhes
é servida pelos investigadores.
A profissionalização dos professores está dependente
da possibilidade de construir um saber pedagógico que não seja puramente
instrumental. Por isso, é natural que os momentos-fortes de produção de um
discurso científico em educação sejam, também, momentos-fortes de afirmação
profissional dos professores. Todavia, estes momentos contêm igualmente os
germes de uma desvalorização da profissão, uma vez que provocam a
deslegitimação dos professores enquanto produtores de saberes e investem novos
grupos de especialistas que se assumem como “autoridades científicas” no campo
educativo. O entendimento deste paradoxo parece-me essencial para compreender
alguns dos dilemas actuais da profissão docente.
É verdade que existe, no espaço universitário, uma
retórica de “inovação”, de “mudança”, de “professor reflexivo”, de
“investigação-acção”, etc.; mas a Universidade é uma instituição conservadora,
e acaba sempre por reproduzir dicotomias como teoria/prática,
conhecimento/acção, etc. A ligação da Universidade ao terreno (curiosa
metáfora!) leva a que os investigadores fiquem a saber o que os professores
sabem, e não conduz a que os professores fiquem a saber melhor aquilo que já
sabem.
A estratégia de desapossar os professores dos seus
saberes serve objectivos de desenvolvimento da carreira dos universitários,
mesmo que se legitime com o argumento de que serve para o desenvolvimento
profissional dos professores. Como desabafava um dos mais prestigiados
professores portugueses dirigindo-se a uma plateia de universitários na área
das Ciências da Educação: “Vocês domesticaram-nos! Não temos mais espaço, nem
legitimidade, para lançar dinâmicas pedagógicas novas”.
Não deixa de ser estranho que, numa época em que tanto
se fala de “autonomia profissional” ou de “professores reflexivos”, se assista
a um desaparecimento dos movimentos pedagógicos, no sentido que este termo
adquiriu na primeira metade do século XX, isto é, colectivos de professores que
se organizam em torno de princípios educativos ou de propostas de acção, da
difusão de métodos de ensino ou da defesa de determinados ideais.
A pobreza actual das práticas pedagógicas, fechadas numa
concepção curricular rígida e pautadas pelo ritmo de livros e materiais
escolares concebidos por grandes empresas, é a outra face do excesso do
discurso científico-educacional, tal como ele se produz nas comunidades
académicas e nas instituições de ensino superior.
DO EXCESSO DAS “VOZES” DOS PROFESSORES
À POBREZA DAS PRÁTICAS ASSOCIATIVAS DOCENTES
Finalmente, é útil chamar a atenção para o excesso das
“vozes” dos professores. Face a situações de dificuldade e de desvalorização
social e profissional, eles deixam-se tentar pelo “sobre-dimensionamento” das
suas missões, apropriando-se de alguns dos discursos anteriores e
transformando-os em “vozes” próprias. Assumem, assim, responsabilidades
desmedidas, ambição que se vira frequentemente contra eles.
É evidente que nenhum grupo profissional pode ser
indiferente à sua imagem pública. E esta estratégia procura valorizar
socialmente o seu papel. Mas ela é particularmente perigosa e tem constituído
um factor importante do mal-estar docente. A escola e os professores não podem
colmatar a ausência de outras instâncias sociais e familiares no processo de
educar as gerações mais novas. Ninguém pode carregar aos ombros missões tão
vastas como aquelas que são cometidas aos professores e que eles próprios, por
vezes, se atribuem.
Curiosamente, é neste tempo de tantas ambições que se
tem acentuado uma maior dependência dos professores face aos poderes públicos,
às entidades privadas e às instituições universitárias. E que se tem notado uma
grande dificuldade de consolidar práticas de partilha profissional e de
colaboração inter-pares. É verdade que há sinais de revitalização do
sindicalismo docente, mas este facto não compensa a inexistência de uma
colegialidade que não se esgota nos modelos sindicais tradicionais.
Ao olharmos para a história, verificamos que nunca a
fragilidade associativa dos professores foi tão grande, o que não deixa de ser
preocupante. Ora, sem um reforço das dimensões colectivas e colegiais no seio
do professorado, não vale a pena levantar a voz (as “vozes”), pois não é por
falarmos mais alto que temos mais razão ou que defendemos melhor os nossos
interesses.
Tradicionalmente, os professores oscilaram entre um
extremo “individualismo” na acção pedagógica e modelos sindicais típicos de
“funcionários do Estado”. São, nos dias de hoje, formas obsoletas de encarar a
profissão. O empobrecimento das práticas associativas tem consequências muito
negativas para a profissão docente. É urgente, por isso, descobrir novos
sentidos para a ideia de colectivo profissional. É preciso inscrever rotinas de
funcionamento, modos de decisão e práticas pedagógicas que apelem à
co-responsabilização e à partilha entre colegas. É fundamental encontrar
espaços de debate, de planificação e de análise, que acentuem a troca e a
colaboração entre os professores.
EM JEITO DE CONCLUSÃO PROVISÓRIA:
POLÍTICAS, FORMAÇÃO, PRÁTICAS, ASSOCIATIVISMO
Seria fácil identificar outros excessos no modo de
pensar os professores: por exemplo, a atitude dos pais exigindo que os
professores assegurem aquilo de que eles próprios já se demitiram ou o
comportamento dos empresários reclamando que os alunos desenvolvam competências
que mais tarde não valorizam. Mas os excessos mencionados são suficientes para
sustentar a minha recusa de um pensamento que se projecta num “excesso do
futuro” como forma de justificar a “pobreza do presente”. Como já se escreveu,
não é por avançarmos os relógios que o futuro chega mais cedo (Koselleck,
1979).
Aparentemente, estou em desacordo com Zaki Laïdi
quando ele denuncia a “tirania da urgência”: “Exigimos do presente o que
esperávamos do passado. A urgência não nega o tempo. Ela sobrecarrega-o com
exigências inscritas apenas na imediatez. (...) É por isso que, na ausência de
um pensamento sobre o futuro, a urgência contribui para o destruir. A sua
pretensa neutralidade temporal é totalmente ilusória, porque toda a preferência
implica uma escolha e toda a preferência excessiva pelo presente conduz
necessariamente a opções excessivas contra o futuro” (1999, p. 27). Mas este
desacordo é aparente. Ambos recusamos um presente e um futuro como “fugas” ou
“refúgios”.
Eu sei que a reflexão prospectiva foi, num passado não
muito distante, a manifestação de um pensamento utópico, de uma vontade de
mudar as coisas da educação. Mas hoje trata-se, na maior parte dos casos, de um
mero jogo nominalista, como se não houvesse outra mudança para além da
alteração dos nomes. São exercícios “técnicos”, esvaziados de uma ideia de
futuro inscrita numa relação ao tempo histórico e social.
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