Prof. Ms. Valter Machado da Fonseca
Introdução
Quando se propõe estudar o pensamento de determinado filósofo ou pensador, está se propondo a si mesmo o livre exercício de pensar. Pensar com o outro, pensar com o próprio pensamento perpassando o pensamento do outro. Não basta, para isso, se contentar em repetir o discurso de um determinado pensador. É preponderante analisar, traduzir, profundamente, este discurso, verificar o que está implícito em suas entrelinhas, observar o que não está presente, o que não está representado, o que está oculto no discurso manifesto.
O que buscava Descartes no “Discurso do Método”? Ele procurava um método que fosse eficaz, que pudesse dar conta da explicação científica. Para ele a metodologia científica da época era incapaz de explicar os fenômenos científicos, era cheia de lacunas e levavam a dúvidas, equívocos e erros. [...] “me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais dúvidas” (DESCARTES, 2009, p.3). Percebe-se neste fragmento textual, a descrença com os ensinamentos, com os métodos de ensino da época. Por outro lado, ele já demonstrava sua tendência e inclinação em validar a linguagem matemática como universal para enunciar sua metodologia:
Deleitava-me principalmente com as matemáticas, devido à certeza e à evidência de suas razões: mas ainda não percebia sua verdadeira explicação, e, julgando que só serviam às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão seguros e sólidos, não se houvesse construído sobre eles nada de mais elevado (idem, p.4)
Neste sentido, ele se apropriou da linguagem matemática para fundamentar sua metodologia. O primeiro ponto que se pode concluir é que os princípios cartesianos tiveram suas bases ancoradas nas incertezas do pensamento humano.
1 O princípio da razão absoluta
Para edificar as bases do seu discurso metodológico Descartes adota os fundamentos da matemática, pela sua exatidão, pela sua linguagem “segura”, para o exercício intelectual do ser humano. Acreditava-o, que dessa forma eliminaria os erros, equívocos e ilusões. Ao adotar tais princípios, ele acaba fragmentando a ciência, ou seja, descarta todo o conhecimento produzido fora do discurso matemático. Aí ele acaba por jogar por terra as diversas concepções de mundo, de vida, de idéias filosóficas acerca do pensamento social. E estas idéias filosóficas foram construídas a partir de onde? Foram elaboradas a partir do pensamento humano, isto é, do intelecto, do cérebro, portanto, da própria razão de cada indivíduo. Eis aí a primeira grande contradição de Descartes.
Porém, ele precisava de elementos que lhe dessem a base inicial de seu discurso. Esses elementos ele buscou, exatamente, na abstração do pensamento, aspecto por ele rejeitado: ele buscou na teologia, na “verdade revelada”. Mais uma vez ele joga por terra o pensamento científico, pois descarta a fonte inicial da pesquisa, as interrogações. Assim, de forma consciente, afirma que a sua teoria da razão absoluta, baseada nas certezas matemáticas tem sua origem na verdade revelada. Neste sentido, a ciência possui sua origem em tal verdade, eis aí outra grande contradição.
1.1 Penso, logo existo!
Não basta pensar para ser, como afirmava Descartes, e, desta maneira, interpretado por Félix Guattari (1990, p.17):
O sujeito não é evidente: não basta pensar para ser, como o proclamava Descartes, já que inúmeras outras maneiras de existir se instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento em que o pensamento se obstina em apreender a si mesmo e se põe a girar como um pião enlouquecido, sem enganchar em nada dos territórios reais da existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como placas tectônicas sob a superfície dos continentes.
Concordando com Guattari (1990), esta visão cartesiana restringe a existência na Terra apenas aos seres pensantes, ou seja, ao próprio ser humano. Esta afirmação acaba por formalizar uma perspectiva estreita e homocentrista[1]. Esta máxima do pensamento cartesiano acaba por excluir da existência todos os seres vivos, além dos recursos necessários à sua sobrevivência. Neste sentido, o homem se coloca, de uma vez por todas acima de todos os seres vivos. Em última instância, acima da natureza, podendo fazer dela o que quiser e a seu bel prazer, ameaçando, inclusive a própria continuidade da existência humana no planeta.
2 O contraponto
Como foi dito no início deste ensaio, para se analisar uma obra, é preciso lê-la com criticidade, interpretar as entrelinhas de seu discurso. Ora, a ciência se constrói exatamente em cima das incertezas. Pode-se afirmar que as incertezas e os questionamentos estão na base do pensamento, do exercício intelectual do ser humano, assim, estão na base do pensamento científico. Não se pode evoluir na construção de novos conhecimentos se não existe dúvidas e indagações, conforme afiança Edgar Morin (2005):
As ciências permitiram que adquiríssemos muitas certezas, mas igualmente revelaram, ao longo do século XX, inúmeras zonas de incerteza. A educação deveria incluir o ensino das incertezas que surgiram nas ciências físicas (microfísicas, termodinâmica, cosmologia), nas ciências da evolução biológica e nas ciências históricas. Seria preciso ensinar princípios de estratégia que permitiriam enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza, e modificar seu desenvolvimento, em virtude das informações adquiridas ao longo do tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certeza. (MORIN, 2005, p.16)
A contribuição de Morin (2005) é uma importante ferramenta para, ao mesmo tempo, entender e fazer o contraponto ao “Discurso do Método” de Descartes. Ela dá subsídios para a apreensão dos elementos e aspectos que precisam ser investigados para a compreensão da ciência moderna, além de auxiliar na percepção das entrelinhas do discurso cartesiano.
O professor Humberto Guido também faz uma importante formulação a este respeito:
Defensores da igualdade natural, os adeptos da teoria do conhecimento atribuíram à matemática a responsabilidade de tornar ato aquilo que existe desde sempre em potência, não em um indivíduo singular, mas na espécie como valor formal, este é um dos paradoxos da modernidade, um tempo em que se afirmou a dignidade do indivíduo, contudo, as afirmações sobre suas possibilidades eram sempre gerais sem considerar as condições sociais díspares em que se encontravam divididos os diversos estamentos sociais. A refutação da tradição foi a abertura que permitiu que se colocasse para fora da esfera educativa todos os conhecimentos que não se adequassem imediatamente ao more geométrico. (GUIDO, 2005, p.4)
Complementando a formulação de Guido (2005), este modelo vem se apropriando, cada dia mais, deste discurso “igualitário”, que analisa o “sujeito” (o homem) e o “objeto” (a natureza), como coisas que podem ser moldadas e trabalhadas segundo os padrões da técnica e do cientificismo. Na verdade, o saber sempre foi privilégio das minorias e das elites intelectuais, aspecto que obteve relevância desde as primeiras escolas dos filósofos da Grécia antiga.
Dessa forma, o processo histórico de construção do conhecimento é permeado por uma gama de fatores que camuflam, disfarçam, dissimulam o discurso que determina os conteúdos desses conhecimentos. Nesse sentido, o conhecimento está, intrinsecamente, ligado ao poder político e econômico que emana das elites que ditam os destinos da humanidade em cada período da história da civilização humana.
3 Referências
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 10 ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2005.
GUIDO Humberto. As ciências Humanas, entre o engajamento e o compromisso. Texto final de fechamento da disciplina Epistemologia e Educação, 2005, 14 pags. (mímeo)
DESCARTES, René. DISCURSO DO MÉTODO. Trad. Enrico Corvisieri. Digitalização: Membros do grupo Acrópolis (filosofia). Disponível em: http://br.egroups.com/group/acropolis/. Acesso em 25 de janeiro de 2009.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 16 Ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1990.
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