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sábado, 19 de fevereiro de 2011

DO DISCURSO CARTESIANO ÀS TRÊS ECOLOGIAS

Prof. Ms. Valter Machado da Fonseca
Introdução
Este texto busca construir elementos para uma reflexão, a partir dos aspectos levantados por Guattari em seu texto: “As três ecologias” em contraposição à abordagem cartesiana. Vivenciamos, nos tempos presentes, mais uma crise cíclica do capital, comparável ao “Crash” da bolsa de Nova Yorque de 1929.
Esta crise que abala os pilares fictícios das principais economias capitalistas mundiais vem demonstrar que o modelo adotado, para garantir a reprodução e expansão do capital, não dá conta de sua tarefa. Au contraire, vem reafirmar que para se manter de pé, ele precisa aprofundar a enorme desigualdade social que marca os tempos modernos. Para garantir o sucesso da mais-valia se faz necessário excluir milhões de homens e mulheres do processo produtivo. É preciso aprofundar a exclusão social, a segregação sócio-espacial, o desemprego, a fome e a miséria. Ou seja, para que o capital possa se reproduzir, visando garantir as engrenagens que mantém o movimento das forças produtivas deste modelo econômico, se faz necessário priorizar um grupo seleto de aristocratas em detrimento do bem-estar social de largas parcelas da humanidade.

O epicentro da chamada “sociedade Global” localiza-se exatamente sobre a necessidade urgente da expansão e reprodução do capital e, para isso não se medem esforços, nem conseqüências. Observa-se a brutalidade da expansão e reprodução do capital através da fome e da miséria absolutas que se espalham por todo o planeta. No mundo todo são milhões e milhões de desempregados e famintos, um exército de zumbis que compõem a reserva de mão de obra barata e descartável a serviço do capital.

Se por um lado a globalização econômica esconde-se por detrás de um discurso inovador, por outro ela aprofunda as contradições do modo de produção capitalista. Essas contradições expressam-se através do desemprego, da violência urbana, da fome, da miséria, do analfabetismo, das doenças e das condições subumanas da maioria da população do planeta. Então, a quem serve a globalização econômica? Em que ela favorece a grande maioria da população mundial? Para onde vão as riquezas produzidas pela expansão e reprodução do capital? Essas indagações só podem levar a uma única conclusão: a armadilha do discurso da inovação tecnológica e científica expressa na globalização, tenta em vão esconder a outra face da moeda, ou seja, a crise civilizacional, ocidental ou da modernidade.
1. O método positivista/cartesiano mantém vivo o “Gigante dos pés de barro”.
O tecnicismo e os princípios da razão instrumental que norteiam a ciência moderna entram em gritante contradição com as necessidades vitais de grandes contingentes da população mundial. O positivismo de Auguste Comte reforçado com o “Discurso do Método” de René descartes é responsável pela fragmentação do conhecimento, visando reforçar a idéia de progresso e (des)envolvimento das nações.      
Que progresso é este que se justifica por meio da destruição do planeta? Que progresso é este que para se sustentar tem que destruir vidas alheias? Que desenvolvimento é esse que leva continentes inteiros à situação de miséria, para sustentar o bem-estar social das nações ditas desenvolvidas? Que desenvolvimento é esse, onde as nações desenvolvidas utilizam as nações pobres como depósito de lixo? Que desenvolvimento é esse, onde as nações para demonstrar supremacia econômica têm que produzir armamentos nucleares, transformando o planeta num depósito de lixo atômico? A humanidade precisa responder, urgentemente a estas questões, se quer, realmente, alcançar o tão almejado “progresso” e o tão cobiçado “desenvolvimento”.
O desenvolvimento das técnicas e da ciência embasado nos princípios comtianos/cartesianos coloca como prioridade da humanidade os anseios de poucos em detrimento das necessidades da maioria. Substitui os projetos sociais vitais para a continuidade da vida humana pela ganância da mais-valia capitalista. Assim a grande maioria da humanidade é transformada em ferramenta da manutenção do mercado de consumo que regula a economia capitalista. Os projetos de transformação social, artísticos, literários, culturais, de resgate da dignidade humana são transformados em mercadorias a serviço do capital. Eles são transformados em projetos de consumo de bens produzidos para a expansão do capital. Neste sentido, o capital constrói seu marketing. O marketing do consumismo, com vistas a aquecer os mercados consumidores.
Mas, na crise do capital, que ora presenciamos, estas contradições se tornam mais claras, mais visíveis. A Terceira Revolução Tecnológica, embasada num discurso globalizador, que promete sonhos, bem-estar social, uma vida sem barreiras e sem fronteiras, descortina uma “nova” crise, sem precedentes, uma crise de projetos de homem e de natureza. Cabe às ciências sociais fazer estas reflexões, cabe a elas a busca de solução para o resgate da dignidade humana, visando afastar a humanidade dos trilhos da barbárie. Vejamos o que nos diz Michael Lowy (1978):
É possível a objetividade nas ciências sociais? Trata-se de uma objetividade do mesmo tipo que a das ciências naturais, como afirmam os positivistas? Não é a ciência social necessariamente “engajada”, quer dizer, ligada ao ponto de vista de uma classe social? Como conciliar esse caráter “partidário” com o conhecimento objetivo da verdade? Essas questões se encontram no centro do debate metodológico na Sociologia, na História, na Economia Política, na Antropologia, na ciência política e na epistemologia há mais de um século. [...] a idéia central da corrente positivista é de uma simplicidade evangélica: nas ciências sociais, como nas ciências da natureza, é necessário afastar os preconceitos e as pressuposições, separar os julgamentos de fato dos julgamentos de valor, a ciência da ideologia. A finalidade do sociólogo ou do historiador deve ser a de atingir a mesma neutralidade serena, imparcial e objetiva do físico, do químico e do biólogo. (LOWY, 1978, p.9-10)   
No mesmo sentido, István Mészáros (2004, p.301) tece uma importante consideração:
Em parte alguma o mito da neutralidade ideológica – a autoproclamada wertfreiheit, ou neutralidade axiológica, da chamada “ciência social rigorosa” – é mais forte do que no campo da metodologia. Na verdade, encontramos com freqüência a afirmação de que a adoção deste ou daquele quadro metodológico nos isentaria automaticamente de qualquer controvérsia sobre os valores, visto que eles são sistematicamente excluídos (ou adequadamente “postos entre parênteses” ) pelo próprio método cientificamente adequado, poupando-nos assim de complicações desnecessárias e garantindo a objetividade desejada e o resultado incontestável. [...] na verdade, esta abordagem da metodologia tem um forte viés ideológico e conservador. [...] acredita-se que a mera insistência no caráter puramente metodológico dos critérios estabelecidos legitima a afirmação de que a abordagem em questão é neutra porque todos podem adotá-la como o quadro comum de referência do “discurso nacional”. Mas, muito curiosamente, os princípios metodológicos propostos são definidos de tal forma que áreas de grande importância social são excluídas a priori  deste discurso nacional por serem “metafísicas”, “ideológicas”, etc.
Ora, os autores acima apontam no sentido da ruptura com os princípios cartesianos e positivistas, como forma de superação da crise provocada pela fragmentação do conhecimento e pelos fundamentos da razão instrumental, rumo à edificação de outra racionalidade, a racionalidade social.
Neste sentido, a ação dos estudiosos do campo das ciências humanas deve ser focada na unificação do conhecimento, na reconquista das raízes filosóficas que pode trazer para a humanidade o livre exercício de pensar, o livre exercício de formular outros projetos de homem e de natureza rumo à construção de outra racionalidade, que traga de volta a dignidade humana, em contrapartida à “lógica” da mais valia. É fundamental reconquistar o direito de a humanidade gerir seu próprio destino por intermédio da escolha de seu projeto de mundo e de vida, garantindo o resgate de sua dignidade.
2. As três ecologias no contexto da crise paradigmática da modernidade.       
Em sua obra “As três ecologias”, Félix Guattari lança seu olhar sobre os principais problemas que afligem a sociedade neste limiar do século XXI:

As formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações. Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades. Elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões. [...] O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esses planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. (GUATTARI, 1991, p.7)
Nesta formulação, Guattari (1991) destaca três dimensões essenciais à compreensão das principais problemáticas da modernidade. Ele destaca as dimensões ambientais, as relações sociais e a subjetividade humana. Concordando com o autor, a análise destas três dimensões ilumina as reflexões sobre as grandes questões que se abatem sobre a sociedade contemporânea.
2.1 A dimensão ambiental    
A dimensão ambiental se manifesta por meio das drásticas consequências que se abatem sobre o ecossistema planetário nos dias atuais. A catástrofe ambiental, em curso, nos dias atuais é herança direta da fragmentação do conhecimento e da razão instrumental que regem o modo de produção capitalista. A Revolução Industrial foi o marco histórico que abriu o flanco para a exploração desordenada dos recursos da natureza.
A partir daí a natureza, sábia por excelência, começou a responder aos ataques contra ela desferidos. Esta resposta veio na forma de grandes catástrofes, como o buraco na camada de ozônio, o derretimento de geleiras e das calotas polares, ocasionado assim, a elevação do nível das águas oceânicas, a elevação do número de enchentes e inundações, os terremotos e maremotos, os furacões e tornados, o aumento do efeito estufa, o aquecimento global, alterações climáticas, desertificação de extensas regiões do planeta, dentre diversos outros fatores.
Guattari desenvolve uma importante formulação a este respeito:
Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo. Uma finalidade do trabalho social regulada de maneira unívoca por uma economia de lucro e por relações de poder só pode, no momento, levar a dramáticos impasses – o que fica manifesto no absurdo das tutelas econômicas que pesam sobre o Terceiro Mundo e conduzem algumas de suas regiões a uma pauperização absoluta e irreversível; fica igualmente evidente em países como a França, onde a proliferação de centrais nucleares faz pesar o risco das possíveis consequências de acidentes do tipo Chernobyl sobre uma grande parte da Europa. Sem falar do caráter quase delirante da estocagem de milhares de ogivas nucleares que, á menor falha técnica ou humana, poderiam mecanicamente conduzir a um extermínio coletivo. (GUATTARI, 1991, p.8-9)     
A formulação do autor coloca em evidência a dramaticidade das consequências da degradação ambiental do ecossistema planetário, onde a tecnologia nuclear é apenas um dos aspectos de deterioração.
2.2 As relações sociais e a subjetividade humana
Essas duas dimensões, aliadas à questão ambiental, constituem o grande diferencial da obra de Guattari. Elas permitem analisar os fenômenos sociais à luz da complexidade do pensamento humano. Ao introduzir a análise dos aspectos ligados às relações sociais, o autor volta seu olhar para a necessidade do debate acerca da necessidade de se retomar os valores perdidos pela irracionalidade da razão instrumental. Valores como solidariedade, ética, compromisso com a vida em todas suas formas, além dos princípios morais coletivos e individuais perdem, cada dia mais, o sentido diante da “lógica” da mais valia e do consumismo, que permeiam este modelo econômico de produção.
Já a inclusão da dimensão subjetiva do pensamento nos permite retomar o centro nervoso que determina a dinâmica das ciências humanas. Em que se embasa o estudo das ciências sociais, senão na observação das relações sociais e na subjetividade do pensamento humano? A inclusão destas duas categorias de análise dos objetos em ciências sociais diferencia, por completo, o pensamento de Guattari em relação ao de Descartes.
O estudo da subjetividade humana abre o canal para que se possa pensar em uma metodologia própria em ciências humanas, resgatando os princípios do pensamento filosófico na construção de novos projetos tanto de homem quanto de natureza. Ele recoloca em discussão exatamente os elementos descartados por Descartes em sua linguagem puramente matemática de seu “Discurso do Método”. Aqui não se trata de desprezar os métodos até aqui utilizados pelas ciências naturais, mas de retomar categorias fundamentais de análise dos fenômenos sociais.
O pensamento humano, ele próprio é constituído na subjetividade, isto é, nos gostos, nas crenças, nos costumes, na liberdade de criação tanto individual quanto coletiva. O conhecimento, como fruto das experiências e do exercício intelectual do ser humano é totalmente ideológico e não pode se constituir em dogmas, em verdades absolutas, acabadas, definitivas. O conhecimento social, como fruto do pensamento humano, se embasa em projetos de homem e de natureza, conforme os anseios individuais e/ou coletivos e definidos pela sua experiência de vida em sociedade. Assim, na verdade, quando Félix Guattari trata de suas três ecologias ele não faz nada mais que lançar as categorias necessárias para a compreensão deste mundo e para a elaboração de novos projetos de mundo, de vida, de homem e de natureza. É nesta direção que deve caminhar a produção filosófica no campo das ciências humanas, por intermédio da investigação que leve em consideração as idéias, as preferências, os costumes as contradições e as experiências individuais e coletivas do homem, enquanto ser pensante, comunicante e transformador da realidade em que vive. Um agente transformador, dentro de uma perspectiva histórica e social de construção da realidade social.
3 Referências:
LOWY, Michael. Método dialético e teoria política. 4 Ed. Trad. Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.__(Coleção Pensamento Crítico; v. 5)
GUATTARI, Félix. As três ecologias. 16 Ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, SP: Papirus, 1991.
MÉSZÁROS Ístvan. O poder da ideologia. Trad. Paulo César Castanheira, São Paulo: Boitempo, 2004.

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