Por NTV
Atentas ao aumento do número de
retratações e ao impacto negativo que isso pode ter sobre sua reputação, as
grandes revistas científicas estão tomando medidas para reforçar seus
mecanismos de revisão e evitar a publicação de trabalhos contaminados por erros
ou fraudes.
"Os leitores precisam ter
confiança nos resultados que são publicados em nossa revista", escreveu no
dia 3 a editora-chefe da Science, Marcia McNutt, em um editorial no qual ela
anuncia a criação de uma Junta de Editores de Revisão Estatística (SBoRE, na
sigla em inglês), incumbida de fortalecer o processo de revisão e checagem de
dados estatísticos nos trabalhos que são considerados para publicação na
revista a partir deste mês.
"Queremos continuar a adotar
medidas razoáveis para verificar a acurácia desses resultados", afirma
Marcia. "Acreditamos que a criação do SBoRE ajudará a evitar erros
honestos e a elevar os padrões de análise de dados, especialmente quando
métodos sofisticados são necessários."
O fato de Marcia precisar defender a
confiabilidade da Science de forma tão contundente num editorial mostra que
confiabilidade da literatura científica está sendo realmente colocada em xeque
pelo aumento significativo do número de correções e retratações registrado nos
últimos anos - realçado por uma série de casos escandalosos, envolvendo
revistas de alto impacto, como o que derrubou as pesquisas com células STAP na
revista Nature, no início deste mês.
Leia também: Aumento na ocorrência de
fraudes preocupa cientistas
A Nature alegou em seu editorial que
não tinha como detectar os erros nos trabalhos antes de eles serem publicados.
De fato, não eram todos erros escancarados, detectáveis "a olho nu",
por assim dizer. Mas, se olhares mais atentos conseguiram detectá-los via
internet rapidamente após a publicação, porque os revisores da Nature não foram
capazes de detectá-los antes disso, quando estavam com as informações em mãos?
Se por um lado a revista tentou se
eximir de culpa, por outro ela reconheceu que seus mecanismos de checagem
precisam ser fortalecidos, e se comprometeu a fazer isso o mais rápido
possível; "para garantir que a confiança dos cidadãos na ciência não seja
traída" -- pois isso, no fundo, é a coisa mais importante que está em
jogo.
A atitude das revistas é louvável, e
quanto mais rigoroso for o sistema de revisão, melhor. Mas talvez não seja
suficiente. Por mais rigorosos que sejam os revisores, eles jamais serão capazes
de detectar todos os erros ou todas as manipulações. Os principais problemas
com os trabalhos das células STAP, por exemplo, só puderam ser confirmados por
meio de uma investigação interna do centro de pesquisas Riken, que teve acesso
aos dados brutos da pesquisa, questionou profundamente todos os pesquisadores
envolvidos e exigiu análises complementares dos resultados, como as que
mostraram haver uma discrepância genética entre as células pluripotentes
geradas e linhagem de células adultas da qual elas supostamente foram
derivadas.
E a grande fraude das células-tronco
embrionárias coreanas, publicada na Science pelo pesquisador Woo Suk Hwang em
2004, só foi revelada graças à coragem de um ex-funcionário dele, que resolveu
denunciar a farsa à imprensa (assumindo um custo enorme para sua carreira e
vida pessoal: http://migre.me/kroC7).
Como, então, evitar a publicação de
dados deturpados como esses?
REVISÃO ABERTA
Esse e outros casos recentes deixam
claro que o sistema tradicional de revisão por pares pré-publicação não está
mais dando conta do serviço. Por isso, fala-se muito na adoção de sistemas de
revisão pós-publicação, que poderiam complementar ou até substituir os sistemas
atuais. De certa forma, isso já está acontecendo, dentro de fóruns digitais
como o PubPeer e PubMed Commons, que permitem aos usuários postar comentários
(de forma anônima, se quiserem) sobre trabalhos científicos, num formato
parecido com o de uma rede social. Com isso, o nível de escrutínio da
literatura científica vem sendo tremendamente aprofundado e ampliado,
especialmente com relação aos trabalhos de alto impacto, que atraem grande
atenção -- tanto de admiradores quanto de rivais.
Foi o que aconteceu no caso das
células STAP. Pois foi justamente no PubPeer que surgiram as primeiras
denúncias de erros e possíveis manipulações, poucos dias após a publicação dos
trabalhos na Nature, que acabaram resultando nas investigações e, em última
instância, na retratação da pesquisa.
O problema é que a revisão
pós-publicação não evita a publicação de erros ou fraudes; apenas corrige algo
que já foi publicado. E isso não pega bem para a imagem da ciência. O
ideal seria que os problemas fossem identificados pré-publicação, para não
precisarem ser corrigidos ou retratados depois. Como salientou Marcia,
precisamos ter a maior confiança possível de que, se algo foi publicado, é
porque está correto (não que seja uma verdade absoluta ou uma palavra final
sobre qualquer assunto, porque isso não existe na ciência ... mas que é um
resultado verdadeiro e produzido de acordo com as melhores práticas
científicas). Hoje, infelizmente, as revistas não estão mais conseguindo passar
essa confiança aos leitores.
Uma plataforma de divulgação e
avaliação de dados pré-publicação que já funciona há algum tempo (desde 1991) é
o arXive.org, mantido pela Biblioteca da Universidade Cornell, no qual
pesquisadores podem "postar" seus trabalhos antes de submetê-los para
publicação, caso se interessem em receber um "feedback" de seus pares
antes disso, ou simplesmente queiram disponibilizar seus dados de forma
imediata para a comunidade científica. O físico Stephen Hawking fez isso em
janeiro, ao colocar no arXive um artigo no qual dizia que os buracos negros não
existem. O artigo teve enorme repercussão na mídia e foi muito debatido na
comunidade científica. Até agora, porém, não foi publicado em nenhuma revista
com revisão por pares.
MELHOR PREVENIR DO QUE REMEDIAR
O problema é que o arXive não
trabalha com todas as áreas da ciência, e trata-se de uma plataforma de adesão
voluntária -- ou seja, não é um passo obrigatório para publicação de um
trabalho; só participa quem quer.
O ideal seria ter algo nesses moldes,
só que instituído como uma etapa obrigatória de revisão pré-publicação. Um
híbrido de arXive e PubPeer, que funcionaria como uma espécie de "estágio
probatório", ou "revisão aberta" pelo qual todo trabalho
científico precisaria passar antes de ser publicado em definitivo. Algo
semelhante a um processo de consulta pública, ao qual são submetidos projetos
de lei antes de serem submetidos ao Congresso para ratificação.
Todas as revistas científicas -- em
especial as de alto impacto, como Nature e Science -- deveriam criar espaços
semelhantes ao arXive dentro de seus sites. O sistema funcionaria assim: 1) Os
trabalhos seriam submetidos para publicação e passariam por um processo interno
de revisão por pares, como de costume; 2) Antes de serem publicados, porém, os
trabalhos aprovados na revisão por pares seriam colocados numa plataforma
digital aberta a comentários da comunidade científica (semelhante ao PubPeer),
para que outros pesquisadores pudessem fazer observações, críticas, elogios,
etc; 3) Só depois de um período nesse "estágio probatório"
pré-publicação, os trabalhos poderiam ser publicados em definitivo -- já com as
eventuais correções, complementações ou modificações necessárias.
Na prática, seria como dizer:
"Avaliamos esse trabalho e pretendemos publicá-lo. Se alguém notar alguma
coisa errada nele, por favor nos avise."
Seria uma forma de acrescentar uma
camada extra, de escrutínio público, ao processo interno de revisão por pares.
Tomando a pesquisa das células STAP como exemplo, se um esquema como esse
tivesse sido aplicado, os problemas que a revista não conseguiu detectar no seu
processo interno de revisão por pares teriam sido detectados no "estágio
probatório" de revisão aberta, e os trabalhos não teriam sido publicados
em definitivo -- evitando, assim, o escândalo da retratação; e protegendo,
assim, a confiabilidade da ciência perante os olhos da sociedade.
Disponível em: http://estadao.br.msn.com/ciencia/revistas-buscam-solu%C3%A7%C3%B5es-para-preservar-a-confiabilidade-da-ci%C3%AAncia
Acesso em 17 de julho de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário