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Foto: rosa em vida. Fonte: pqavidaassiim.blogspot.com |
Valter Machado
da Fonseca*
Domingo
passado, numa revista eletrônica de uma das maiores emissoras de TV do Brasil,
vi uma matéria jornalística formatada de maneira absurdamente vergonhosa. Não
sei se o termo “Vergonhoso” faz jus à minha decepção e ao susto que tive diante
da forma com que a matéria foi formatada. E ela foi anunciada por um dos
apresentadores da revista eletrônica, também recentemente formatado, no sentido
mais amplo da notícia enquanto mercadoria.
A
matéria “jornalística” [agora entre aspas, porque não sei mais o que é
jornalístico diante de uma matéria com esta] tratou do assunto que já deixou de
ser manchete no telejornalismo há certo tempo, a tão comentada “barriga de
aluguel”. Tratava-se de um casal que queria ter filhos, mas, por um motivo
qualquer, não podia tê-los. Aí, o casal resolveu apelar para a Índia, local
onde, na atualidade, é legalmente permitida tal prática. Note que, o que está
em discussão neste texto não é a validade [o mérito] das experiências
científicas com a tal “barriga de aluguel”, mas trata-se, fundamentalmente, da
conotação, da forma com que a emissora de TV tratou do assunto.
Observem
que o assunto em questão envolve relações humanas, sensibilidade e, sobretudo
envolve vidas humanas e mais, envolve vidas de crianças. O “jornalista” em
questão, ao finalizar a matéria e, para dar ênfase ao sucesso do casal que
conseguiu alcançar seu desejo de ter filhos, por intermédio da “barriga de
aluguel”, utilizou a seguinte frase: eles conseguiram “duas vidinhas novinhas
em folha”.
Aparentemente,
para os menos avisados e desinformados, a frase é descuidadamente inocente.
Mas, absolutamente não o é, meus caros (as) leitores (as)! Existe
propositadamente uma forte dosagem de ideologia altamente sacana, por detrás de
tal afirmação. O termo “novinho em folha” é um termo altamente capitalista
utilizado para quaisquer mercadorias [bens de consumo] que acabaram de sair de
uma fábrica. É um termo utilizado para carros novos, geladeira nova, bicicleta
nova, casa nova, dentre outros. É um termo que teve sua origem na linha de
montagem da produção em série de diversas mercadorias que visam ao atendimento
dos mercados consumidores.
Será
que as vidas humanas, em especial as vidas de crianças recém-nascidas, podem
ser chamadas de “vidinhas novinhas em folha”. Não! Absolutamente não, meus
caros leitores! Não se pode permitir que vidas humanas sejam banalizadas, sejam
colocadas no nível de uma reles mercadoria de consumo. Não se pode permitir que
a vida humana seja tão aviltada como se fosse um simples bem de consumo. A vida
humana não pode jamais ser descartada, jogada no lixo, desta forma tão
manipulada, para atender às demandas do mercado da indústria das
telecomunicações, como é o caso das grandes redes de TVs. Será que o marketing tradicional de vendas de
produtos televisivos está tão inoperante, tão ineficiente e tão incapacitado
que exige um rebaixamento tão vexatório da condição humana?
Vamos
torcer, ardentemente, que a sociedade do fetiche e sedução ao consumo e ao
descartável não tenha atingido tal estado de degeneração. Tomara que este seja
apenas mais um caso isolado de culto ao consumismo, aos enlatados e aos
descartáveis e que não se torne regra geral. Torçamos para que a afirmação do
nosso querido Boaventura de Sousa Santos “o capital promove a conversão do
corpo humano em mercadoria última” não esteja tão latente como aparece na
matéria da revista eletrônica de domingo na TV. Caso contrário, além de “nossas
vidinhas estarem novinhas em folha”, estaremos entrando, definitivamente, em um
mundo e numa sociedade decadentes, degenerados, corroídos e “velhinhos como
sucatas”.
* Escritor. Geógrafo, mestre e
doutorando pela Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisador e professor da
Universidade de Uberaba. machado04fonseca@gmail.com
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