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Fonte: BBC Brasil (2014) |
Por NTV
No dia 1º de fevereiro, 8,8 milhões
de paulistanos foram surpreendidos por uma novidade: se consumissem 20% menos
água, ganhariam desconto de 30% na conta seguinte. O bônus faz parte das
medidas emergenciais adotadas pelo governo do Estado durante a pior crise
hídrica vivida por São Paulo na sua história recente. A princípio, o bônus
valeria até setembro, mas, em março, foi estendido até o fim do ano. O
significado da prorrogação é claro: o problema é grave e não há previsão de
quando será resolvido - e a situação pode piorar.
Após o verão mais quente e seco em
sete décadas, o nível do principal conjunto de reservatórios da região
metropolitana, o Sistema Cantareira, chegou a 14,6% na última sexta-feira, o
mais baixo desde que foi criado, em 1974. O comitê anticrise, formado pela
Agência Nacional de Águas (ANA), o Departamento de Águas e Energia Elétrica
(Daee) e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp),
estima que o Cantareira se esgotará pela primeira vez em junho, se nada for
feito. O governo de São Paulo aponta como razão o clima. 'Com mudanças
climáticas, tem ano em que chove demais e, em outros, de menos', afirmou o
governador Geraldo Alckmin em entrevista à rádio Bandeirantes. 'É uma situação
excepcional.'
Mas a situação não é tão incomum.
Maria Assunção Silva Dias, pesquisadora de Ciências Atmosféricas da USP, diz à
BBC Brasil que São Paulo já viveu períodos graves de escassez. 'Não é nem
preciso falar em mudanças climáticas. Existe a variabilidade normal do clima',
afirma Dias. 'Desde 1930, tivemos vários anos de precipitação bem abaixo da
média, alguns deles seguidos. Se aconteceu no passado, pode acontecer de novo.
Não é surpresa.' Entre 2009 e 2013, São Paulo viveu a situação contrária, com
chuvas até 30% acima da média. Era natural, diz a especialista, que em seguida
viesse um período de seca. 'Tinha-se a ideia de que havia autossuficiência de
água em São Paulo, mas não é verdade', afirma Dias. 'A crise expôs a fragilidade
do sistema, que opera no limite. Bastaram três meses de pouca chuva para ver
que ele não se sustenta.'
Dependência
A permissão para que a Sabesp retire
água do Cantareira foi renovada há dez anos, quando o atual governador Alckmin
ocupava o mesmo cargo. Na época, já se previa no contrato de outorga buscar
formas de reduzir a dependência da região da capital, que é abastecida por
outros três sistemas - o Alto Tietê, Guarapiranga e Rio Claro -, em relação ao
Cantareira.
Na avaliação do Ministério Público do
Estado (MPE), o governo não cumpriu essa exigência. 'São Paulo continua a
retirar a mesma quantidade de água do que há dez anos e pede ainda mais na nova
permissão, que será conferida em agosto', diz a promotora Alexandra Faccioli.
'Estamos passando por esta situação porque o planejamento falhou. Não foi feito
o que era necessário.' O secretário de Saneamento e Recursos Hídricos, Edson
Giriboni, diz que medidas importantes foram tomadas, como a redução do
desperdício de água no sistema de transmissão de 30,7%, em 2011, para 25,7% em
2013. Ainda assim, hoje um quarto da água tratada se perde em algum lugar do
caminho entre a represa e a torneira.
O governo passou a captar mais água
da bacia do Alto Tietê: de 10 mil litros por segundo para 15 mil litros por
segundo. Também começou as obras para usar mais 4,7 mil litros por segundo do
Vale do Ribeira, no interior do estado, com a construção do sistema São
Lourenço. O início das operações era previsto para 2016, mas foi revisto para
2018. 'Sem essas ações estaria faltando água', diz Giriboni. 'A falta de chuvas
complica.'
Abaixo do normal
Não se pode, de fato, desconsiderar a
questão climática entre os motivos desse momento crítico. O último verão foi o
mais quente desde 1943, quando começaram as medições. A temperatura média, de
31,3°C, ficou 3°C acima do que no verão passado. Tudo graças a uma zona de alta
pressão do Oceano Atlântico, que ficou parada sobre a região Sudeste por
semanas e afastou as frentes frias e as chuvas. O alerta soou em dezembro,
quando choveu 72% abaixo do normal. Em janeiro e fevereiro, a média foi 66% e
64% menor, respectivamente. É a estiagem mais intensa nos registros de chuvas
feitos desde 1930.
A pior marca anterior, de 61%, havia
ocorrido em janeiro de 1953. Mas, na época, havia dez vezes menos pessoas
vivendo na grande São Paulo, que conta com aproximadamente 20 milhões de
habitantes atualmente. 'O crescimento urbano acelerado aumentou a demanda de
forma desorganizada. Com isso, o sistema ruiu', diz Mario Mendiondo, professor
do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São
Carlos da Universidade de São Paulo (USP), à BBC Brasil. 'É a crise mais
impactante dos últimos 80 anos.'
Alerta
No entanto, o governo estadual já
havia sido alertado da fragilidade do sistema em 2009, durante a administração
de José Serra, que é do mesmo partido do atual governador Geraldo Alckmin, o
PSDB. Um documento produzido pela Fundação de Apoio à USP, o relatório final do
Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, destacava que o Cantareira tinha um
'déficit de grande magnitude' e aconselhava que medidas fossem tomadas para
evitar seu colapso.
O Ministério Público questiona ainda
a ação do governo durante a crise. Em 3 de fevereiro, o MPE e o Ministério
Público Federal enviaram um documento ao governo recomendando que a quantidade
de água enviada a São Paulo fosse reduzida. A Sabesp tem direito a usar 24,8
mil litros por segundo do sistema Cantareira. Com a seca, vinha usando 33 mil
litros. Fazia isso porque tinha direito a um excedente previsto nas regras. Se
em um ano chove bastante e não se usa toda a água, ela é contabilizada como
economia e pode ser distribuída à população depois.
A redução acabou sendo realizada, um
mês depois - primeiro para 31 mil litros e, agora, para 27,9 mil litros por
segundo. 'Cumprimos as determinações dos órgãos reguladores', diz o secretário
Giriboni. 'A situação é avaliada mensalmente, e havia em fevereiro uma
possibilidade estatística de que chovesse bastante. Só que não choveu.'
Risco
Manter o volume retirado evitou que
as torneiras secassem, mas acelerou o esvaziamento do Cantareira. 'Respeitar o
limite da permissão implicaria em racionamento, medida que já deveria ter sido
adotada. Mas há uma resistência grande em fazer isso porque não parece ser
conveniente no momento', diz Faccioli, do MPE. 'Colocou-se o sistema em risco.
Precisamos de medidas de longo prazo e não imediatistas.'
Para evitar o racionamento, o governo
estadual iniciou obras avaliadas em R$ 80 milhões nas represas de Jaguari e
Jacareí, no município de Joanópolis, e de Atibainha, em Nazaré Paulista, no
interior de São Paulo. Isso permitirá retirar a água que fica no fundo, além do
alcance do atual sistema de captação. Esse recurso nunca havia sido usado.O
chamado volume morto é de cerca de 400 bilhões de litros. A previsão é usar
metade.
Ainda foram redirecionadas águas das
Bacias do Tietê e Guarapiranga para atender 3 milhões de pessoas. A exigência
de consumo mínimo de água foi suspenso. A empresa ModClima foi contratada por
R$ 4,5 milhões para produzir chuva artificial sobre os reservatórios. E houve
um corte de 15% da quantidade de água vendida para as cidades de São Caetano e
Guarulhos - esta última aplicou um sistema de racionamento para compensar a
perda.
Dois novos 'Cantareiras'
Mas, segundo cálculos do próprio
governo em um estudo elaborado ao longo de mais de cinco anos - e apresentado
neste mês -, São Paulo necessita dois novos sistemas equivalentes ao Cantareira
nos próximos 20 anos para evitar o desabastecimento. O investimento é de, no
mínimo, R$ 4 bilhões.
Duas barragens na região das bacias
dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí já começaram a serem construídas.
Quando estiverem prontas, em 2018, gerarão 7 mil litros por segundo. O estado
ainda tenta obter junto ao governo federal autorização para ligar o Cantareira
à Represa Jaguari, em Igaratá, por meio de canais e bombas. Avaliada em R$ 500
milhões, a ligação levaria mais 5,1 mil litros por segundo ao Cantareira a
partir do segundo semestre de 2015.
Esta represa recebe água do Rio
Paraíba do Sul, que abastece 184 cidades em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo. Governo e prefeituras fluminenses resistem à proposta. 'Meus técnicos
adiantaram que é uma possibilidade remota, eu diria inviável, porque ela
implica atrapalhar o abastecimento da população do Rio', disse o governador
Sérgio Cabral, em sua conta no Twitter. 'Isso não será tolerado.'
Peso eleitoral
A questão começa também a ganhar peso
eleitoral. Na sexta-feira, dois pré-candidatos ao governo estadual, o
ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha e o presidente da Federação de
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, criticaram o governo
Alckmin. 'Se uma obra pode resolver o problema em um ano, por que não foi
anunciada antes?', questionou Skaf em um congresso no interior do estado.
Padilha fez coro em um artigo: 'Soluções permanentes levam quatro anos (para
ficar prontas). Resta torcer para que chova'.
As perspectivas não são animadoras.
Apesar de em março ter chovido acima da média, não foi suficiente para reverter
a situação do Cantareira. Segundo um estudo do Consórcio Intermunicipal das
Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), a cabeceira do sistema
precisa receber ao menos três vezes mais chuvas do que o normal para elevá-lo a
níveis mínimos.
Com o início do outono, na última
sexta-feira, a expectativa é de boa quantidade de chuvas entre abril e maio,
mas a tendência é que a escassez volte dali em diante com o tempo seco do
inverno. 'Dificilmente vamos sair dessa situação crítica até a próxima
temporada de chuvas, no fim do ano', afirma Dias, da USP. Enquanto isso, é
melhor economizar água.